Percebo um aumento expressivo na procura por terapia entre outubro e dezembro e isso não é ao acaso; reflete padrões emocionais e sociais profundos que caracterizam esse período do ano.
A Retrospectiva Compulsória e Seus Gatilhos
O primeiro motivador é o que chamo de “efeito retrospectiva compulsória”. O fim do ano nos força a um balanço, querendo ou não. É como se a sociedade inteira parasse e perguntasse: “E aí, o que você fez com sua vida este ano?”. Essa tomada de consciência, embora necessária, gera ansiedade e urgência por mudança. Para muitas pessoas, esse processo de autoavaliação é doloroso e inevitável.
As festas de fim de ano amplificam esse fenômeno, funcionando como gatilhos importantes. Para quem tem histórico de conflitos familiares, a proximidade do Natal e Ano Novo traz uma ansiedade intensa. Para pessoas enlutadas, especialmente quem perdeu alguém recentemente, essas datas reativam a dor de forma aguda. A cadeira vazia na mesa, a ausência nas fotos, tornam o período especialmente difícil.
Observo também um fenômeno interessante entre jovens adultos: a “crise das comparações de fim de ano”. É quando colegas da faculdade ou do ensino médio começam a postar conquistas nas redes sociais – formaturas, promoções, casamentos, viagens internacionais, compra do primeiro imóvel. Isso desencadeia uma cascata de questionamentos sobre o próprio valor e trajetória. Essa comparação social intensificada tornou-se um dos principais gatilhos para a busca por ajuda psicológica neste período.
A Tirania da Produtividade e o Esgotamento Crônico
O impacto dessa cultura de hiperperformance é profundo e, ouso dizer, uma das principais causas de sofrimento que vejo no consultório atualmente. As pessoas chegam exaustas, com a sensação de que nunca é suficiente. No trabalho, há cobrança por entregas até o último dia útil do ano, fechamento de metas, relatórios, apresentações. No âmbito pessoal, listas intermináveis: ler X livros, emagrecer Y quilos, viajar para Z lugares, economizar determinado valor.
O problema é que essa mentalidade produtiva transformou até o lazer e o descanso em métricas de desempenho. As pessoas não descansam mais, elas “otimizam” o descanso. Identifico um padrão particularmente doloroso que chamo de “esgotamento por otimização” – pessoas que não têm um minuto de ócio genuíno. Se estão no trânsito, precisam ouvir podcast educativo. Se estão na academia, precisam otimizar o treino com o app mais recente. Se estão em férias, precisam documentar cada momento no Instagram para provar que “aproveitaram bem”. Até o descanso precisa ser produtivo, e isso é uma contradição existencial que gera imenso sofrimento, manifestando-se como exaustão crônica, sensação de inadequação constante e, frequentemente, sintomas de burnout.
As Redes Sociais e a Amplificação do Sofrimento
A dinâmica da comparação social sempre existiu na humanidade, mas as redes sociais a transformaram em algo onipresente, inescapável e extremamente tóxico. Antes, você se comparava com seu círculo próximo: colegas de trabalho, vizinhos, familiares. Agora, você se compara com milhões de pessoas simultaneamente, 24 horas por dia, 7 dias por semana. E não se compara com a realidade dessas pessoas, mas com versões cuidadosamente editadas, filtradas e muitas vezes completamente falsas de suas vidas.
O fim do ano potencializa isso exponencialmente. Instagram, Facebook, LinkedIn se transformam em verdadeiras “galerias de sucessos”. É um bombardeio constante de mensagens que, subliminarmente, dizem: “Olha como minha vida é incrível. E a sua?”. Surge então o que chamo de “depressão algorítmica” – os algoritmos tendem a mostrar mais do mesmo, então se você passa tempo vendo posts de pessoas “bem-sucedidas”, será bombardeado com mais disso. Cria-se uma bolha perigosa de “todos estão bem menos eu”.
Um aspecto particularmente cruel é como as redes sociais distorcem marcos de vida e sucesso. Muitas pessoas se sentem pressionadas a vivenciar experiências só porque todos estão fazendo, não porque querem de verdade. As redes transformaram escolhas pessoais em obrigações sociais, e o impacto é especialmente devastador em datas comemorativas, quando a discrepância entre a “vida perfeita” online e a realidade se torna insuportável.
O Espectro do Sofrimento: Manifestações Clínicas
A ansiedade é, de longe, a queixa mais prevalente. Mas não é uma ansiedade simples ou pontual – é multifacetada e se apresenta de diferentes formas. A ansiedade generalizada manifesta-se como preocupação constante e difusa que permeia todos os aspectos da vida, pessimismo catastrófico em relação ao futuro, hipervigilância exaustiva e irritabilidade aumentada, podendo evoluir para ataques de pânico.
A ansiedade social é particularmente intensa neste período. O fim do ano, com suas inúmeras festas, confraternizações e reuniões, é um pesadelo para quem sofre com isso. Surgem pensamentos ruminativos sobre como serão julgados, ensaios mentais exaustivos de conversas e evitamento de compromissos sociais, o que paradoxalmente intensifica o isolamento e o sofrimento.
Os sintomas depressivos também se intensificam, sejam preexistentes ou desencadeados pela época. Para quem perdeu entes queridos, o luto torna-se particularmente agudo – as festas familiares evidenciam a ausência, as músicas natalinas trazem memórias dolorosas, as mensagens de “feliz ano novo” parecem uma ironia cruel. Em casos mais graves, pode surgir ideação suicida, especialmente quando a discrepância entre a expectativa social de felicidade e alegria e o sofrimento interno gera um desespero profundo.
Compreendendo a Complexidade: Uma Análise Multifatorial
A complexidade do sofrimento de fim de ano exige uma análise que integre aspectos psicológicos, sociais, culturais e econômicos.
Do ponto de vista psicológico, nossa mente é profundamente afetada pela forma como concebemos o tempo. No Ocidente, temos uma visão linear e progressiva – sempre devemos estar “evoluindo”, “crescendo”, “progredindo”. O fim do ano funciona como um marco dessa progressão, como se a vida fosse dividida em “anos letivos” com avaliação ao final de cada um. Essa estrutura temporal cria pressão imensa porque implica que o tempo está “acabando”, que você está envelhecendo, que deveria ter conquistado mais.
Simultaneamente, ocorre uma dissonância cognitiva dolorosa entre o real e o ideal. No início do ano, muitos constroem uma versão idealizada de quem serão em dezembro – o “eu futuro” perfeito que terá conquistado X, Y e Z. Conforme o ano avança e a realidade não corresponde a essa fantasia, a dissonância se intensifica. Em vez de ajustar as expectativas progressivamente, muitos negam a realidade até dezembro, quando não há mais como fugir. O choque entre o “eu que imaginei que seria” e o “eu que realmente sou” pode ser devastador.
Além disso, as festas são carregadas de memórias. Cada música natalina, cada decoração, cada mensagem pode ser um gatilho que reativa traumas e lutos antigos, tornando o período emocionalmente perigoso para pessoas vulneráveis.
Do ponto de vista social e cultural, vivemos sob o que chamo de “tirania da felicidade obrigatória”. Nossa cultura transformou o fim de ano em um período em que não só você deve estar feliz, mas deve demonstrar essa felicidade publicamente. Há uma cobrança social, implícita e às vezes explícita, de que você esteja em “clima de festa”, grato, celebrativo, esperançoso. Para quem está deprimido, enlutado, ansioso ou simplesmente cansado, isso é uma violência simbólica – como se seu sofrimento fosse inaceitável, inadequado, fora de lugar.
A obrigatoriedade da reunião familiar adiciona outra camada de complexidade. A família pode ser fonte de apoio e amor, mas também de conflito, cobrança, julgamento e dor. O fim de ano impõe a reunião como obrigatória, e quem não vai é visto como egoísta ou problemático. Muitas pessoas se submetem a convivências tóxicas por pressão social, enfrentando perguntas invasivas e comportamentos inadequados dos parentes.
Esse período também institucionaliza a comparação social. Nas reuniões familiares, encontros de amigos e confraternizações de trabalho, há uma troca inevitável de “atualizações de vida”. Cada pessoa apresenta suas conquistas do ano, gerando comparação automática. Para quem teve um ano difícil, estar nesses ambientes é angustiante – ou você mente e performa um sucesso que não teve (gerando dissonância interna), ou admite que não foi bem (expondo-se a julgamento e pena alheia).
A cultura do hiperconsumismo atinge seu ápice no fim de ano, com pressão social enorme para comprar presentes, fazer ceias fartas, viajar, sair para festas. Para quem não tem recursos financeiros ou está endividado, essa época é fonte de vergonha e estresse imensos. Muitos se endividam ainda mais para “dar conta” das expectativas sociais, gerando ansiedade que perdurará por meses.
Do ponto de vista comportamental, alguns padrões agravam o quadro. O aumento do consumo de álcool nas festas pode intensificar quadros depressivos e ansiosos. Muitos usam álcool como “automedicação” para lidar com situações sociais difíceis, o que pode levar a um padrão problemático de uso. Paradoxalmente, enquanto há explosão de atividades sociais, quem está em sofrimento tende ao isolamento – evitam festas, não respondem mensagens, se afastam de amigos e familiares. Esse isolamento agrava o quadro porque elimina possíveis fontes de suporte.
Caminhos para o Cuidado: Orientações Práticas
A primeira e mais importante orientação é: o calendário é uma construção social, não uma verdade absoluta. O dia 1º de janeiro não apaga magicamente seus problemas nem invalida suas conquistas. Você não “fracassou” porque não cumpriu uma lista. Você viveu, e viver é complexo e imprevisível. Permita-se rever suas expectativas com compaixão.
Em vez de listar o que NÃO conquistaram, sugiro que as pessoas listem o que SOBREVIVERAM. Sobreviveu a uma pandemia global? A perdas? A crises financeiras? A problemas de saúde mental? Isso já é uma conquista imensa. Depois, olhar para as pequenas vitórias: aquele dia que conseguiu sair da cama quando tudo parecia impossível, aquela conversa difícil que teve coragem de ter, aquele momento que escolheu pedir ajuda.
Para quem está sobrecarregado, a orientação é prática: aprenda a dizer não. Não precisa ir a todas as festas, comprar presentes caros, responder todas as mensagens, fingir estar bem. É mais saudável ser autêntico do que exausto. Estabeleça limites claros com trabalho, família, amigos e principalmente consigo mesmo. E se perceber que a sobrecarga está afetando significativamente sua saúde mental – sono, apetite, humor, funcionamento no dia a dia – busque ajuda profissional. Não espere ficar muito mal.
Faça um exercício honesto de reflexão: questione a origem de suas metas. Elas eram genuinamente suas? Ou eram expectativas internalizadas da família, da sociedade, das redes sociais, da cultura do sucesso? Muitas pessoas passam a vida perseguindo metas que nunca foram realmente delas, e depois se sentem vazias mesmo quando as atingem. Pergunte-se: “Se eu tivesse atingido essa meta, eu estaria genuinamente mais feliz, ou apenas me sentiria momentaneamente validado externamente?”. A diferença é crucial.
Reavalie também o que é sucesso. Nossa cultura tem uma definição muito estreita – dinheiro, status, aparência, conquistas visíveis. Mas sucesso pode ser ter mantido sua saúde mental em um ano difícil, ter pedido ajuda quando precisou, ter sido honesto sobre suas limitações, ter dito não a algo que te faria mal, ter sobrevivido a uma crise, ter mantido relacionamentos importantes mesmo quando estava exausto. Quando ampliamos a definição de sucesso, percebemos que fomos mais bem-sucedidos do que pensávamos.
Em meio a todas as reuniões sociais obrigatórias e superficiais do fim de ano, cultive conexões genuínas. Priorize tempo de qualidade com pessoas que verdadeiramente te apoiam. Uma conversa profunda com um amigo próximo vale mais do que dez festas superficiais. E se você não tem essas conexões atualmente, saiba que está tudo bem estar sozinho também. Solidão escolhida conscientemente é diferente de isolamento forçado. Às vezes, o melhor presente que você pode se dar é tempo sozinho, em paz, sem a pressão de performar para ninguém.
E por fim, talvez a orientação mais importante: você não tem apenas uma chance de “acertar”. Você pode começar de novo amanhã, daqui a uma semana, em março. A vida não é uma prova única onde você passa ou reprova – é uma série infinita de oportunidades de fazer escolhas diferentes, aprender, crescer, tentar novamente. O “fracasso” de hoje pode ser o aprendizado que te leva ao sucesso de amanhã. Metas não cumpridas podem ser reajustadas, não abandonadas. Talvez aquela meta não fosse realista, ou o caminho precisasse ser diferente, ou o timing não era o certo. Isso não é fracasso – é aprendizado. E aprendizado é crescimento, mesmo quando dói.

